Leandro é um garoto negro que mora na periferia, em Sergipe. A sua vida foi banhada por dificuldade, desamparos e saudades. Na escola em que estuda, que é comunitária e afrocentrada, ele se aproximou de um psicólogo para compreender o que o seu pai, um homem extremamente complexo, afetou no seu modo de ser.
Caçula tem apenas sete anos e seu maior sonho é estudar em uma escola de verdade. A menina mora num povoado que tem um gigante pé de mulungu. Debaixo dele, a escola faz morada. Essa árvore, respeitada e cuidada por todos dali, está sofrendo um grande risco de ser cortada por uma fábrica de suco.
As histórias de Leandro e Caçula são projetos de filmes sergipanos que ganharam premiações no último Nordeste Lab, um festival que promove articulação e fomento do cinema nacional, o evento aconteceu em Salvador. Na plateia, Fellipe Paixão ouviu o nome do seu futuro filme, “Pretinha”, que conta a história de Leandro ser anunciado como vencedor do prêmio Youtube. Fellipe levantou na hora. Com a mão para cima e o dedo indicador estendido balançando de um lado para o outro, em negação.
Para somar a surpresa, após passar por algumas etapas de seleção até a apresentação do pitching, uma apresentação para “vender o seu produto” a possíveis investidores, Antônio Rafael, já na crença de que voltaria para Sergipe sem prêmios para o seu projeto sobre a menina Caçula, soube que estava enganado. O projeto “Caçula e o Pé de Mulungu” voltou para Sergipe e vai além: toma o rumo da França e será visto em outro mundo.
Antônio Rafael e Fellipe Paixão são estudantes do Curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Já ao final da graduação, eles se sentem extremamente felizes por essas conquistas, em que consideram não ser pessoal, mas dos seus colegas também, do Curso de Cinema da UFS e de todo Sergipe.
“A gente tem um senso de coletividade muito diferente. A gente tá fora do eixo do Nordeste, ou seja, a gente tá fora do eixo que já tá fora do eixo. Nós estamos em um lugar tão distante desse holofote, que acabamos criando um senso de coletividade maior, que acima de tudo a gente tem que levantar o cinema daqui [de Sergipe]”, falou Fellipe.
Finalização do pitching apresentado por Antônio Rafael (Crédito: Breno Silva)
Porém essa felicidade que foi conquistada pela alta qualidade dos projetos, traz na bagagem muito suor. Essas produções são realizadas por meio de baixos recursos orçamentários – que chegam a ser até zero -, e estrutura do departamento defasado, computadores e equipamentos antigos ou com defeitos.
O Curso de Cinema da UFS produz, em média, cerca de dez curtas-metragens por ano, segundo a vice-coordenadora do curso, Maíra Ezequiel.
“O problema maior mesmo é a estrutura, que é muito precária dentro da UFS, em termos de suporte. Os equipamentos do Departamento [de Comunicação Social] são defasados. Não tem espaço para a realização dos filmes, não tem uma ilha de edição com computadores que atendam ao que de fato a gente precisa, a gente não tem um orçamento mínimo para fazer os projetos”, comentou Fellipe.
Por não terem apoio financeiro, os alunos precisam fazer festas, rifas, vender geladinho nas ruas, para poder bancar todos os custos que um filme envolve. “A gente teve que se organizar para fazer festa. Então, além das preocupações com a produção do filme, a gente teve que fazer uma festa para conseguir uma grana. A gente teve que pensar em diversas maneiras de driblar essa falta de grana”, falou Renata Mourão, hoje egressa do curso.
Esses custos vão desde o transporte para locais de gravação, programas de edição, peças de roupa que são usadas pelos atores até aluguel de equipamentos e locações. “Somos pouco e fazemos muito. É fora do comum. Os nossos alunos são adoecidos, eles ficam muito estressados, e é muito estressante mesmo, não tem para onde fugir”, disse o professor do Curso de Cinema e Audiovisual da UFS, Diogo Cavalcanti.
Segundo os estudantes Fellipe e Antônio, os alunos do curso produzem um filme em cerca de três meses, o que é muito rápido levando em conta todos os processos que precisam para que um filme nasça.
Cinema sergipano para o Brasil ver
As produções de Fellipe e Antônio não são as primeiras a receberem prêmios dessa magnitude. Renata Mourão e Júlia da Costa produziram em 2020 um curta-metragem como Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), o “Abjetas 288”.
O filme conta a história de duas personagens, Joana e Valenza, em uma Aracaju distópica. As duas caminham pela cidade ao som de música eletrônica e sons ruidosos, enfrentando um sistema autoritário. “Abjetas 288” aborda questões de territorialidade e identidade, sempre trazendo elementos que contam sobre o espaço Aracaju.
Um dos cenários que foi gravado “Abjetas 288” era um terreno baldio do bairro Novo Paraíso, um terreno vasto, cheio de lixo e que era cenário para muitas pessoas que esperavam o ônibus passar. Logo quando começaram a gravar, Renata e Júlia se depararam com o terreno sendo preparado para uma nova estrutura. Hoje, no terreno onde foi gravado um filme que fala sobre poder, capitalismo e repressão, está a loja da Havan.
“Abjetas 288” ultrapassou as fronteiras de Aracaju, foi parar em outros estados e conseguiu chegar na Mostra de Cinema de Tiradentes, em Minas Gerais, um dos maiores festivais de cinema do Brasil. Em 2021, ainda no período da Covid-19, Júlia e Renata assistiam a transmissão dos resultados. E quando foi anunciado que “Abjetas 288” venceu o prêmio de Melhor Curta-Metragem na Mostra Foco pelo júri oficial, as lágrimas jorraram.
“Como que a gente fez tudo isso desse jeito e conseguiu vencer de pessoas que fizeram filme com pelo menos R$ 70 mil e que tem uma vasta equipe? Então acho que os perrengues da produção se tornam pequenos depois do resultado, e muitas vezes a gente não tem espaço para falar como é difícil fazer um filme”, falou Renata.
As condições em que os alunos de Cinema da UFS enfrentam para produzir os seus trabalhos, acabam, por vezes, inserindo uma percepção de que os filmes não possuem qualidade, pois são feitos com muitas gambiarras. “É um universo que parece ser distante. E também tem a questão da autoestima com os nossos projetos, se é bom mesmo, se eu tô fazendo só para ganhar pontos [nas disciplinas]. E quando a gente chega nesses lugares, é como uma validação da qualidade dos nossos projetos”, disse Antônio Rafael.
Antônio dirigiu “Cadê o mamulengo que tá aqui?”, um falso documentário que investiga o desaparecimento de artistas na cidade de Aracaju. O seu curta-metragem recebeu uma moção de aplausos pela Secretaria de Cultura de Sergipe, venceu dois prêmios de Melhor Curta Universitário, dois prêmios de Melhor Roteiro e um prêmio de Melhor Filme.
Em 2024, o Curso de Cinema da UFS completou 15 anos de existência e só após essas bodas de cristal, o curso recebeu, pela primeira vez, um auxílio financeiro para as produções. “Eu conversei diretamente com o reitor e disse ‘eu não quero mais meus alunos passando por problemas de sanidade, porque produzir filme é caro’. Da mesma forma que um geólogo tem que ir em um campo estudar o solo, o nosso trabalho de campo é produzir filme, e isso custa”, falou o professor Diogo.
Após conversas e mais conversas, a Reitoria da UFS disponibilizou um valor de R$ 400 para cada aluno matriculado nas disciplinas do interdisciplinar, o que somou cerca de R$ 8 mil. Isso ajudou a fazer produções com mais tranquilidade, que equipamentos fossem alugados e pessoas fossem pagas por seus trabalhos. “A minha luta agora é para isso continuar, para ver se a gente consegue manter e se incentivos como esse podem ir para os TCCs”, acrescentou Diogo.
O cinema como lugar de projeção
Vindo do município de Nossa Senhora do Socorro para Aracaju, Fellipe Paixão é a primeira pessoa do seu grupo familiar a se formar em uma universidade pública. Ao observar a comunidade em que viveu boa parte da sua vida, Fellipe foi construindo as ideias do seu filme “Pretinha”.
“Eu venho de um povoado isolado de Socorro, que a gente já vive essa realidade comunitária. Tem uma escola [pública e municipal], que eu conheço basicamente todas as pessoas que trabalham nela, e ela só funciona porque as pessoas fazem com que ela funcione, porque não chega nada [de recursos] do município, então é mais um lugar de observação e projeção”, contou Fellipe.
As ideias que formaram “Caçula e o pé de mulungu” também vieram da observação do mundo. Antônio Rafael se deparou com a notícia de que crianças da reserva indígena Aconã, localizada no estado de Alagoas, estudaram, por 20 anos, embaixo de uma árvore por não terem a estrutura de uma escola. Outra notícia que Antônio encontrou em seu caminho foi sobre a audiência que o Ministério Público de Sergipe realizou para que a empresa Maratá resolvesse os problemas de mau cheiro no município de Estância.
“Quando eu comecei a montar o roteiro, eu quis buscar problemas atuais do Nordeste, para tentar fugir um pouco da coisa da seca, dessa coisa que está mais estereotipada”, explicou Antônio.
Pensar sobre os espaços de Sergipe e os seus arredores se tornou comum entre os estudantes do Curso de Cinema da UFS. A cada ano que passa, os alunos sentem a necessidade de espelhar as várias culturas sergipanas em seus filmes, e como se tirassem leite de pedra, eles vão mostrando outros olhares de Sergipe para o mundo.
“Eu estava pensando em gírias, em jeitos de falar, citando lugares de Sergipe que só vão reconhecer quem é de Sergipe. Tem gente que tem receio de fazer isso, porque quando essa produção vai para outros estados, não vai ser recebida da mesma forma. Mas a gente tem o mapa do Rio de Janeiro inteiro na cabeça, porque as pessoas fazem isso a anos”, falou Fellipe.
Em “Abjetas 288”, além de espelhar o cenário político em que o Brasil vivia – Jair Bolsonaro na presidência sendo uma figura caricata da extrema direita -, Renata e Júlia quiseram mostrar a imagem da juventude aracajuana que vinha ganhando força. “A gente queria retratar a juventude daquela época e atual de Aracaju. Tinha um circuito efervescente ao thecno, principalmente do coletivo da Fugácida, que tinha peças de rua, performances ao vivo, isso tudo foi referência para a gente”, contou Júlia da Costa.
Como em “Abjetas 288” e nos futuros filmes “Pretinha” e “Caçula e o pé de mulungu”, é possível perceber a construção de um Sergipe que vai além da atualidade. São representações do agora e do futuro. Essa é a arte do cinema. “O cinema tem uma capacidade visionária com relação a ver a sociedade, com relação a vislumbrar uma sociedade mais justa”, disse a professora do Curso de Cinema e Audiovisual da UFS, Ana Ângela.
Para assistir as produções que são realizadas no Curso de Cinema e Audiovisual da UFS, basta acessar www.acervo.cinemaeaudiovisualufs.net.br